
Portfólio Pessoal
Lua Cheia
Às vezes, no quente luar do meu Nordeste, naquelas noites especiais de lua cheia, quando o céu, a lua e a terra pareciam estar mais unidas do que nunca, nessas noites, noites de lobisomens, mulas-sem-cabeça, feitiçarias, mas, sobretudo, noites de lembranças; doces e entristecedoras lembro-me de minha infância, lembro-me de minha casa outrora iluminada à luz do candeeiro. Lembro-me das noites felizes em que a lua brilhava intensamente naquele paraíso dos meus sonhos. Pega-pega, polícia-ladrão, ladra-bandeira, esconde-esconde e o meu preferido... histórias de Trancoso. Os adultos, todos reunidos em uma calçada cuidadosamente escolhida, divertiam-se com as histórias miraculosas que os contadores sempre juravam que eram verdadeiras. As crianças, e eu também, divertíamo-nos nos vastos terreiros guiados pela luz da tão bela lua cheia. As mais diversas brincadeiras surgiam, e sempre eram mais gostosas nos períodos e principalmente nas noites de lua cheia. Já altas horas, quando esgotadas estavam as forças, os ânimos e as brincadeiras, juntava-me aos adultos, e no colo aconchegante de minha mamãe amada ou nos braços firmes, porém amorosos, de meu papai querido, ouvia as mais fantásticas histórias que a mente nordestina podia atinar. Fantasmas, tesouros, caçadores enfeitiçados, choro de alma de crianças (anjinhos), todas as histórias narradas, cantadas ou declamadas em forma de cordel. Os cordéis de Lampião, do Padre Cícero, de Camões, de João Grilo, de Cacão-de-Fogo, do Pavão Misterioso tinham público fiel nas noites do meu Nordeste. Lendas e realidade, tradições e superstições, uniam-se de tal maneira que ficava impossível para minha mente ainda em desenvolvimento separá-los. Era um mundo limitado apenas fisicamente. A imaginação era a televisão ou mesmo o facebook do nordeste de outros tempos. Tempos bons. Tempos de minha infância querida. Tempos em que minha única preocupação era qual seria o tamanho da cidade feita de caixas de fósforo que eu estava sempre a construir. Eu era rei, presidente, piloto de avião, soldado na guerra, motorista de ônibus, de caminhão, era vendedor, professor em minhas improvisadas escolinhas, mas, sobretudo, eu era sonhador. Eu era feliz.
Não havia energia elétrica e televisão era algo raro. Lembro-me de meu primeiro filme que assisti ainda em uma televisão de nove polegadas, imagem preto-e-branco e alimentada por pilhas ou uma bactéria de carro. Assistíamos apenas o importante. Sabíamos exatamente quanto tempo durava o intervalo. Desligávamos a televisão sempre nos intervalos para economizar carga. Super-homem foi o primeiro filme e a primeira novela foi cachorro-vira-lata. Mas isto já foi quando eu contava com aproximadamente dez anos. Lembro-me que precisávamos andar mais de três quilômetros a pé para chegar na casa onde havia a televisão. Na sala aglomerava-se nunca menos que vinte pessoas para assistir aquela caixinha preto-e-branco de nove polegadas. Como morávamos no sítio, apenas um sinal de emissora, durante muitos anos eu achei que só existia no mundo a Globo.
Por necessidade, meus pais iam para a cidade sempre uma vez por mês fazer a tão esperada feira do mês. Íamos na carroceria de uma Chevrolet C10, ano 62, cabine comum. A viagem nada confortável em estrada de terra durava na ida algo em torno de uma hora e na volta nunca menos que duas horas. Saíamos de casa às cinco horas da manhã e só retornávamos lá pras quatorze horas da tarde. Lembro perfeitamente que meu pai era aposentado e recebia algo em torno de R$ 60,00. Minha mãe fazia uma feirinha que cabia nas certinhas de mão. Nunca fumos pobres. Meu papai era fazendeiro, tínhamos muitas terras, gado, porcos, criação, galinhas e roçados. Mas a vida era bem simples. Uma das grandes desvantagens de possuir terras, é que nem sempre o rico possui dinheiro. Não éramos ricos também. Éramos o que hoje conhecemos como classe média. Tínhamos pouco dinheiro, porém, meu papai tinha muitas posses e bastante prestígio. Naqueles tempos era o bastante para viver bem.
Apesar das dificuldades era uma vida calma, sossegada, em que trabalhar muito era apenas para as pessoas que queriam. O ganho de dinheiro era praticamente nada, mas também o gasto não existia. Dava para viver apenas com o que a terra oferecia. Roupas eram feitas manualmente em casa. Não existia luxo, todavia não existiam gastos. Sem gastos não havia necessidade de dinheiro, salvo em algumas raras ocasiões. Doenças por exemplo. O escambo era uma prática muito comum em minha comunidade.
Este sonho de paraíso só existiu até os meus dez ou onze anos. Depois disto, a tecnologia alcançou meu refúgio. O desenvolvimento. A energia elétrica. Depois de então meu mundo transformou-se rapidamente no mundo que conhecemos hoje. Vivi naquela casa com meus pais por mais cinco curtíssimos anos. Aos dezesseis anos estava formado no ensino fundamental e precisava ir para a cidade cursar o ensino médio. Morei com minha avó por três anos e findado o ensino médio mudei para outra cidade com o intuito de fazer faculdade, onde atualmente moro sozinho. Nesses últimos anos, e principalmente depois da morte de minha mãezinha, tenho relembrado copiosamente daqueles dias. Quer dizer... Daquelas noites. Das noites de minha infância. Das noites que não voltam mais. Das noites que...? Se foram.